Adeus aos mártires

Por Daniel Souza [1]

Para Leon & Hildete

Me falaram de um deus.
Eu chorava na quietude
dos dias sós.

A irmã morta sorria
o riso pálido dos santos.

Me falaram de um deus.
Deus em branco.
Deus que faz das flores, pedras.
E de pedras, compreensão.
Deus amargurado.
Chora e geme
na quietude dos dias sós.

Consolo.

Hilda Hilst

“Onde está o crucificado da capela”?

Em 2009 estive em San Salvador, na Universidade Centroamericana José Simeon Canãs (UCA), na celebração de vinte anos do martírio de parte daquela comunidade jesuíta. Uma vivência profunda. Cheguei naquela cidade depois do país viver a tormenta de um furacão. Muitos bairros e regiões estavam nas ruínas. Durante a semana, vivia na UCA e em Comunidades Eclesiais de Base. Nos finais de semana, ficava em uma Igreja Metodista na periferia da cidade, que acompanhava áreas atingidas pelo furacão. Conversei com muita gente. A memória dos mártires estava presente em muitos lugares, em muitas histórias. Não apenas de Ignácio Ellacuría, Segundo Montes, Martín Baró, Amando Lopez, João Ramón Moreno, Joaquim Lopez y Lopez, Júlia Elba e sua filha Celina, mas também de Dom Oscar Romero. Eu me lembro bem da grande vigília realizada em novembro naquele ano. Saí do aeroporto e, com a ajuda de um querido pastor metodista, fui direto para a missa. Fiquei impressionado com o número de pessoas, de ônibus das cidades vizinhas e das áreas rurais. E mais: foi a primeira vez que vivi e que rezei diante da memória dos mártires. Uma experiência nova para um protestante de origem batista. Viver aquele curto período em El Salvador foi algo fundamental e transformador em minha espiritualidade e teologia.

 Jon Sobrino disse que a vida em El Salvador trouxe o peso de realidade aos conceitos teológicos com os quais ele estava acostumado a lidar e a refletir. Talvez eu tenha sentido o mesmo. Estudava a teologia daquele “círculo” jesuíta desde que entrei no curso de graduação na Universidade Metodista de São Paulo (2007). A mística salvadorenha me acompanhava. Mas, mesmo assim, quando entrei na Capela da UCA, olhei para o altar e lá só vi muitas cores e uma cruz central com uma estética característica de muitas comunidades cristãs da América Central. Mas faltava algo naquela cruz. Ao meu lado estava uma professora que me acompanhou nesse intercâmbio: Martha Zechmeister. Fiquei incomodado e perguntei: Onde está o crucificado da capela? Com aquele olhar direto, ela me disse: olhe para as outras paredes da Igreja. Fui virando aos poucos e em cada parte vi quadros desenhados – com lápis ou carvão – de corpos em suas realidades de violência. Corpos que viveram a dor da repressão presente naquele país. Os crucificados estavam ali. Deus crucificado, povo crucificado. Fiquei calado diante de tantas cruzes – essas e todas aquelas que acompanhei em cada ruína causada pela tormenta do furacão Ida – e diante da fé de uma gente que não abandona o desejo de “descer da cruz as vítimas”.       

Em julho de 2019 participei do encontro da Irmandade dos Mártires no Mosteiro da Anunciação, na cidade de Goiás (GO). Fui convidado pelo Padre Mirim para partilhar sobre o martírio das pessoas vítimas da intolerância religiosa. Conhecia aquele espaço graças aos textos e conversas com Marcelo Barros e Paulo Ueti. Pessoalmente, estava na incerteza e na angústia de . Mas era preciso viver aquele “retiro”. E deveria ser naquele lugar. Ali também encontrei tantas cruzes & tantas ressurreições. Com essa memória, só me lembro do poema de Hilda Hilst, que é epígrafe desse texto-relato: “A irmã morta sorria / o riso pálido dos santos. / Me falaram de um deus. / Deus em branco. / Deus que faz das flores, pedras. / E de pedras, compreensão. / Deus amargurado. / Chora e geme / na quietude dos dias sós. / Consolo”. Que paradoxo! Deus amargurado que chora, geme na solidão e é consolo. Como cristãs e cristãos, esse é o elemento mítico fundante por onde tentamos compreender o mundo. Não apenas na chave de uma racionalidade “clara e distinta”, não apenas como aqueles que correm desesperados para a esperança a todo custo sem a coragem de, no abismo da desesperança e do medo, encontrar a possibilidade de uma vida. A espiritualidade vivida naquele mosteiro me ajudou nessa prática. Mas também, me levou a compreender como essa fé cristã, por exemplo, ao mesmo tempo anuncia um Deus que liberta e também pode anunciar um Deus que conquista e coloca outros corpos na cruz, como Mãe Gilda, yalorixá do candomblé, morta em 2001, vítima do racismo religioso.

Em fevereiro de 2020, em pleno carnaval, A Estação Primeira de Mangueira coloca na Sapucaí a mística salvadorenha dos “povos crucificados”. Para além das suspeitas teológicas em relação a esse desfile, levantadas, por exemplo, por Alexya Salvador, Cris Serra & André Musskopf – algo que retomarei no tópico abaixo – quero resgatar dois momentos emblemáticos para essa reflexão inicial. O primeiro é a imagem do carro alegórico “O calvário”. Na cruz, uma menino negro, cabelo platinado e o corpo cravejado de bala – símbolo de um estado necropolítico que sobe para as favelas com a decisão de matar “nossa gente”. O seu olhar para o céu parece repetir a pergunta: “Por que me abandonaste?”. O segundo momento é a entrada das baianas da Escola. Elas representam os Orixás crucificados, nas saias têm-se a palavra “Oxalá”, no topo de cada cruz está a inscrição INRI. Entre tantas interpretações, como a vinculação possível feita com Jesus & Oxalá no sincretismo do Senhor do Bonfim, interessa-me aquela próxima ao Calvário do menino do morro. A cruz, como símbolo do “império”, segue a sua prática de política de morte e de violência, especialmente com os corpos negros, negados no projeto de país. Tantos crucificados, tantas memórias, tantos martírios que permanecem latentes. Como podemos viver uma espiritualidade diante dessas vidas e diante da “máquina” da cruz? 

A espiritualidade do martírio: o que aprendi com Jon Sobrino [2]

De maneira “oficial”, numa determinada tradição cristã, o martírio é “a aceitação livre e paciente da morte por causa da fé (incluindo seu ensino moral) em sua totalidade ou com respeito a uma doutrina concreta (esta vista sempre na totalidade da fé)” (SOBRINO, 1999, p. 240). A compreensão do martírio é assumida como odium fidei, um “supremo testemunho” da fé cristã. No entanto, a partir de histórias como as vivenciadas em El Salvador ou no Brasil, por exemplo, foi urgente transformar a compreensão do próprio martírio. De maneira direta, aprendi com o “círculo” teológico da UCA que mártir é, fundamentalmente, “aquele e aquela que, no substancial, seguem a Jesus, vivem dedicados à causa de Jesus e morrem pelas mesmas razões de Jesus. São os mártires ‘jesuânicos’” (SOBRINO, 1999, p. 241). E isto implica em duas novidades em relação à concepção “oficial” de martírio. A primeira, seguir o modo de vida de Jesus e a sua prática é levar em frente o anúncio do evangelho do reino de Deus para as vítimas e a denúncia profética do antirreino; a segunda, o “mártir jesuânico” não é apenas, nem principalmente, aquele que morre por Cristo ou por causa de Cristo (odium fidei), mas, sobretudo, o que morre como Jesus e pela causa de Jesus (SOBRINO, 1999, p. 242).

Além desses pontos, as realidades de martírios jesuânicos apontam para a existência de ídolos – realidades históricas, que se fazem passar por divindades, com características de ultimidade, autojustificação, intocabilidade, promoção de salvação a (suas) seus adoradores, embora os desumanizem e exijam, sobretudo, vítimas para continuar a existir (SOBRINO, 1990, p. 32). Ao se tocar nos ídolos – dizendo a verdade sobre o contexto, analisando as causas estruturais de uma realidade sacrificial, para além dos relatos da oficialidade – há a necessidade do assassinato de quem denuncia. “É a necessária reação dos ídolos de morte contra qualquer um que se atreva a tocá-los” (SOBRINO, 1990, p. 32). À luz dos mártires – seguindo o exemplo de Jesus – desvelamos realidades de morte e a crueldade do real, com verdades que libertam e também podem, de maneira paradoxal, anunciar novos horizontes de vida e outros modos de experiência de espiritualidade.

No entanto, estas realidades de mártires não acontecem numa espécie de conflitos inter-religiosos ou, ainda, nos “campos missionários do oriente” – como se narrou numa determinada tradição cristã (católica ou protestante). Os assassinatos dos padres e jesuítas da UCA aconteceram no “autodenominado mundo ocidental, democrático e cristão, que invoca a Deus; mais ainda, que diz invocar o verdadeiro Deus” (SOBRINO, 1990, p. 41). Os mártires que relembramos no encontro no Mosteiro da Anunciação também foram mortos e perseguidos em nossa “civilização”. Marielle Franco foi brutalmente assassinada por um narcoestado – e suas combinações entre estado, igreja, milícia, tráfico e capitalismo – em pleno regime democrático. Isto sinaliza que o problema e a causa do martírio é estrutural e provoca a compreensão que “a linha divisória da humanidade é a idolatria que está presente por toda a parte” (SOBRINO, 1990, p. 41). Ao serem mortos pela denúncia a sistemas idolátricos, como o próprio narcoestado neoliberal, os mártires não são apenas mártires da Igreja, mas da luta pela justiça. Por isso, numa perspectiva inter-fé, podemos seguir a memória e o desejo dessas pessoas pela vida digna. Testemunhas evocadas em distintas experiências de fé e de espiritualidade. Ou, como escreveu Sobrino: “há mais realidade jesuânica em morrer por haver vivido como Jesus que em morrer por haver confessado que Jesus é o Cristo” (SOBRINO, 1999, p. 245).

Poderia encerrar o meu relato nesse ponto. Diante da memória de Jesus e daquelas pessoas – e também da natureza – que são mortas pela mesma causa (o reino), temos um compromisso ético e espiritual de prossegui-las em seus testemunhos diante dos nossos contextos. Aqui começam as minhas suspeitas em relação à espiritualidade do martírio. Ponderações e provocações teológicas desde dentro dessa mística. Para isso, me aproximo de algumas teólogas e teólogos para além desse “núcleo duro” de uma determinada teologia da libertação (do “círculo de El Salvador” ou dos irmãos Boff).

Algumas suspeitas e inquietações sobre o martírio 

Ivone Gebara vai no ponto da questão. Ela escreve: “ser da teologia da libertação era acreditar num ‘modelo’ especifico de Deus” (GEBARA, 2017, p. 25). Segundo ela, uma certa “ortodoxia conceitual dogmática” da TdL se sustenta em “fixismo binário e hierárquico”, algo criticado, por exemplo, por antropologias feministas, centradas na “relacionalidade, interdependência e mistura” (2017, p. 24). Mesmo na TdL – e a sua ruptura epistemológica – há marcas de que continuamos com a metafisica cristã como modelo, e “a partir dela deduzimos as posturas éticas justificadas a partir de uma ideia do bem segundo a vontade divina” (2017, p. 24). Valoriza-se mais os “princípios” que emanam dessa “metafísica”, que a vida cotidiana das pessoas. Falamos mais do Deus libertador (ainda metafísico) que pede de nós uma luta pelo reino em oposição ao antirreiro. E parece que esquecemos ou colocamos em segundo plano a vida e a paixão das pessoas que seguem o seu dia a dia em negociações e agenciamentos para viver e ser feliz. Sabemos dizer desse Deus que liberta. O Êxodo está em nossa “consciência” – com opressores e oprimidos sendo buscados e nomeados a todo instante. O trabalho de base “funcionou”. Mas não sabemos viver em meio aos desejos e ambiguidades que racham os discursos sobre Deus, sobre o povo e sobre a conscientização. A nossa espiritualidade do martírio ainda deixa o Deus libertador em paz com a sua hierarquia e sua ordem.

Sobre essa tranquilidade, há uma questão decisiva, em relação aos modelos eclesiásticos e espirituais de uma “igreja dos pobres” e uma “igreja dos mártires”, que é apresentada por Ivone Gebara: “um Deus mais ‘flutuante e impreciso’ não ajudava muito uma compreensão da esquerda da sociedade, compreensão que vigorava na teologia da libertação” (GEBARA, 2017, p. 24). Era necessário um Deus libertador nos moldes soberanos de sempre, mas agora ao lado dos pobres e mártires, com o modelo dos camponeses de Canaã. Por isso, a teologia da libertação se construiu como “uma teologia rural” – dirá Marcella Althaus-Reid – e “a estrutura fornecida pelas comunidades camponesas foi às vezes privilegiada em detrimento das vidas dos pobres urbanos” (ALTHAUS-REID, 2005, p. 17). Inclusive em sua estética e em suas práticas litúrgicas, com orações e músicas. Um desafio  posto por essa teóloga argentina é se afastar da noção de “unicidade de Deus” “para ser refletida biblicamente, dogmaticamente ou eclesiologicamente”. Por exemplo, Jesus “se assemelhando a Deus” espelha-se em uma única heterodivindade sem fronteiras fluidas e desejos que cresçam na inquietação e rebeldia (2003, p. 109). Assim, quando projetamos nossos mártires, continuamos a imaginá-los nessa semelhança na “heterodivindade” única. Mártir com corpo, mas sem carne. Mártir com corpo, mas sem sexo. Ou: a espiritualidade do mártir em uma teologia guiada por um “militante” ideal e projetado. A crítica realizada por Alexya Salvador, Cris Serra & André Musskopf ao desfile da Mangueira e a sua “teologia do martírio” escancara a “heterodivindade” ali posta, mas sem abandonar e reconhecer a potência do enredo que “‘não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão’”. No carro “O calvário”, “o estandarte verde e rosa cobre o sexo do Jesus-menino-negro na cruz barroca (como se esse pudor estivesse presente na violência praticada contra a juventude negra da periferia) e continuamos sem saber o que há debaixo da saia de d*us” (MUSSKOPF, 2020). E ainda, diretamente: “Jesus pode ser tudo, menos (mulher) trans” (SALVADOR, 2020).

Outra questão importante: questionar a hierarquia do Deus libertador ou a “imagem e semelhança” de um Jesus camponês não é nos levar a uma teologia dos acoplamentos. Agora esse Jesus também é mulher, é gay, é negro, é trans, é jovem, é a yalorixá crucificada. Parece-me que novamente seguimos na busca dos “sujeitos históricos”, dos “novos” sujeitos de uma hermenêutica teológica que deve receber uma “tradição” de espiritualidade da libertação. Mas o modelo de Jesus e de Deus libertador seguem o mesmo. Padrões de “bem” e “verdade” que continuam a guiar a vida. Aqui me inquieto como Marcella Althaus-Reid, que já indicava: “a teologia da libertação deve ser entendida como um processo contínuo de recontextualização, um exercício permanente de profunda dúvida na teologia”; e quando Althaus-Reid fala de “profunda dúvida”, não se entende aqui “o acréscimo de novas perspectivas contextuais a um discurso teológico estabelecido” (2005, p. 17). Estamos diante de um esgotamento do próprio processo da identidade fixa e “metafísica”. Mas todas essas preocupações levantadas aqui já estavam presentes – no âmbito da teologia feminista – durante a década de 80 e nas seguintes, mas “não foram levadas a sério pelos teólogos da libertação que continuaram sua missão de serem também guardiões da tradição patriarcal e arautos de uma nova teologia” (GEBARA, 2017, p. 25).

Por fim, além das preocupações com o Deus libertador, a suspeita em relação à semelhança com a causa (ainda dicotômica entre opressor x oprimido) e à imagem de Jesus (“heterodivino” & “camponês”), inquieta-me a feitura do “mártir-museu”. Ao imaginarmos as histórias desses martírios, a vida dessas pessoas, inventamos um passado apenas da cruz e da ressurreição, do sujeito engajado e reificado como novo “messias” fora de sua vida, fora de seus dilemas, misturas e ambiguidades. Quando estava no Mosteiro da Anunciação, fiquei muito tocado com os relatos que ouvia, eles traziam vida ao corpo-sacralizado das memórias dos estandartes. Eu me lembro de ouvir um relato, dito baixinho por Janira Sodré durante alguma fala sobre o martírio do Padre Josimo. “Não podemos esquecer a vida dessas pessoas. Tem toda a força da luta. Mas sabe qual era a sua grande preocupação, escrita nos diários? Deixar a sua mãe sozinha”. Ao se falar do mártir “público” sem viver o filho e a sua casa, cindimos sua vida. Ao se fazer essa escolha, sem viver esses afetos, desejos e medos, parece-me que ainda estamos dentro de uma idealização do “sujeito histórico” e do “sujeito teológico” e do mesmo modo “moral” em que a saída para o sofrimento passa por um elogio à dor e ao sofrimento da cruz e do martírio. Dessa forma, a  salvação e a libertação seguem o mesmo paradigma do sacrifício e da sua necessidade para a vivência de fé e da “luta”. Como desvelar o modo de operação do narcoestado neoliberal em sua lógica sacrificial (ou idolátrica seguindo uma categoria da TdL) sem abandonar, no coração de nossa espiritualidade, o elogio (às vezes velado) ao próprio sacrifício?  

O adeus necessário

Jacques Derrida fez um belo discurso na morte de Emmanuel Lévinas, em 27 de dezembro de 1995. Esse texto, publicado como parte de um livro, tem me mobilizado. O seu título tem relação com o pequeno relato que agora escrevo: “adeus”. Em francês, há três sentidos para essa palavra: (i) a saudação ou bênção dita no momento do encontro; (ii) a saudação ou bênção dada no momento da separação, incluindo o momento de se deixar para sempre; e (iii) o “a-deus, o para Deus ou diante de Deus antes de tudo e em toda relação com o outro, em qualquer outro adeus. Toda relação com o outro seria, antes e depois de tudo, um adeus” (DERRIDA, 2015, p. 15). Derrida não desejava falar sobre Lévinas, dizer quem ele era, suas marcas, suas inquietações. Para além de tudo isso, o seu desejo era: “falar diretamente, dirigir-se diretamente ao outro, e falar ao outro que amamos e admiramos, antes de falar dele” (DERRIDA, 2015, p. 16). Dizer palavras em relação com, uma aliança que implica uma responsabilidade ética diante desse outro, diante do seu rosto que me arrasta para um posicionamento e uma implicação de vida. Como anunciar as testemunhas que nos movimentam em nossa ancestralidade de fé escapando da objetificação da memória dos outros, das memórias dos mártires? Da palavra que se transforma em informação e conhecimento de algo, para a palavra da aliança, capaz de, na relação eu-outro, estabelecer uma morada de existência.

A espiritualidade do martírio pode nos levar para um “dever da memória” arriscado, seja no sacrifício, na necessidade da morte e sofrimento ou ainda na sacralidade do outro, a transformação em uma vida separada do âmbito comum, das relação do dia a dia. Dizer adeus diante do rosto é anunciar a santidade do outro, que é mais santo “que uma terra, mesmo quando a terra é Terra Santa” (DERRIDA, 2015, p. 19). A santidade desses outros de nossa história de vida e de fé ultrapassa a sacralidade. Ultrapassa inclusive os nossos projetos políticos – também sacralizados – de garantia da “Terra prometida”. Nas palavras de Derrida: há uma “transcendência do santo em relação ao sagrado” (2015, p. 19). Por isso, dizer adeus aos mártires é assumir a coragem para a insegurança e a incerteza de um mistério que não se deixa nomear, não se deixa reduzir, não se deixa enclausurar. O rosto está lá, para além do objeto sacralizado. Essa provocação não é uma tarefa fácil para o nosso exercício teológico e para a nossa espiritualidade pouco relacionada ao silêncio e à impossibilidade da própria linguagem.       

Quero dizer adeus a Josimo. Dizer diante dele. Dizer adeus a Dorothy. Mas essa palavra é difícil de ser dita e parece abarcar um tanto de nossas vidas. O nosso desafio e nosso limite profundo é a morte. Ao retomar o que aprendeu de Emmanuel Lévinas, Derrida escreve: a morte é a “paciência do tempo”, a morte como a “não-resposta”. A morte – diz Lévinas – “é um escândalo (‘é possível que ele esteja morto?’) de não resposta e de minha responsabilidade” (DERRIDA, 2015, p. 21). Estar diante do desconhecido, da finitude, do silêncio, da ausência das respostas. E ao mesmo tempo: nos colocando na responsabilidade e compromisso com a vida. Por que sofre um justo? É o dilema de Jó que nos persegue. O abandono de Deus. Como aprendemos na páscoa, entre a cruz e a ressurreição há o silêncio do shabbat, o desconhecido. Sem o triunfalismo das mortes “pelas vidas” ou das mortes “pelo reino”. Adeus ao outro, a esse rosto, diante de mim, adeus como uma “questão-oração”. E aqui está o que me toca: chamar os mártires “por seu sobrenome, chamar seu sobrenome, seu nome, tal como ele responde em nós, no fundo de nosso coração, em nós mas antes de nós, em nós diante de nós – chamando-nos, lembrando-nos: ‘a-deus’” (DERRIDA, 2015, p. 30). No intervalo, no entre-nós, há a possibilidade de a-Deus, a vivência de Deus-em-nós. Tenho a lembrança de todos os nomes ditos no Mosteiro da Anunciação, diante desses rostos encontramos o vazio e o abandono de Deus, mas ao mesmo tempo – no paradoxo de nossa fé – nos deparamos com a possibilidade de Deus acontecer no sábado santo de nossa relação.

Sugestões de leitura

ALTHAUS-REID, Marcella. La teología indecente. Perversiones teológicas en sexo, género y política. Barcelona: ediciones Bellaterra, 2005.

___. The Queer God. Londres-Inglaterra: Routledge, 2003.

DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015.

GEBARA, Ivone. Teologia da Libertação e outras teologias na América Latina: desafios para hoje. Em: PARDO, Daylíns Rufín & MARRERO, Luis Carlos (orgs.). Re-encantos y Re-encuentros: Caminos y desafíos actuales de las Teologías de la Liberación. Havana: Centro de Estudos – Conselho de Igrejas de Cuba / Centro Oscar Arnulfo Romero, 2017c, p. 21-33.

MUSSKOPF, André. A Mangueira mostrou a saia de d*us – mas não ousou levanta-la. Revista Senso, 2020.

SALVADOR, Alexya. Postagem no Facebook. Perfil Pessoal. 24 de fevereiro de 2020.

SOBRINO, Jon. Os seis jesuítas mártires de El Salvador. Depoimento de Jon Sobrino. São Paulo: Edições Loyola. 1990.

___. Los mártires jesuánicos en el tercer mundo. Revista Latinoamericana de Teologia. n. 48, v. 16, 1999. p. 237-255. 

SOUZA, Daniel Santos. Cristologia na encruzilhada: possibilidades de uma cristologia pluralista da libertação a partir de J. Dupuis e J. Sobrino. São Paulo: Reflexão, 2016.


[1] Doutor em Ciências da Religião. É professor da educação básica e pesquisador colaborador, em estágio do Pós-doutorado em filosofia, da UFABC – Universidade Federal do ABC. Ligado à Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB).

[2] Para aprofundar as reflexões sobre a teologia do martírio, veja o primeiro capítulo do livro: SOUZA, Daniel Santos. Cristologia na encruzilhada: possibilidades de uma cristologia pluralista da libertação a partir de J. Dupuis e J. Sobrino. São Paulo: Reflexão, 2016.

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