A experiência do 1º Encontro da Irmandade dos Mártires

Por Cláudia Borges e Miriam Fábia

A Mística,
O Sagrado,
A Vida
E A Ressureição!

Talvez seja muita pretensão dizer que o texto vai  abordar a metodologia do I Encontro da Irmandade dos Mártires da Caminhada, que aconteceu de 05 a 07 de julho de 2019, na cidade de Goiás. Talvez, seja muita ousadia de nossa parte historiar a metodologia desse encontro. Então o que fazer? Abrir os nossos corações e deixá-los compor o nosso olhar sobre o encontro que vivemos, experimentamos, no campo do sagrado, da mística, da vida e ressureição, encantados e encantamentos. Esse é o desafio que nos propomos a expressar nesse pequeno texto.

O encontro começou ao reunir pessoas que vieram das várias regiões desse país, trazendo além de sonho, esperança e memória, um pouco da terra, seu solo sagrado, para compartilhar. A acolhida reafirmava o compromisso de viver a mística da memória do martírio, da luta e defesa da Vida. “Terra….terra sagrada” era o mantra entoado para iluminar a apresentação de cada um dos participantes, suas identidades e as memórias coletivas de suas terras. Cada pouco de terra nas mãos marcou o chão do auditório com a construção de uma mandala, onde as terras com cores diversas, representando o que os homens e mulheres são e podem ser, pássaros de todas as cores. Foram muitas expressões: Voz, Cantoria, Gestos, Palavras, Acolhidas no coração, fermentadas no pensamento, que teima em constituir-se em coragem, esperança e construção de uma terra nova.

O amanhecer do sábado, além do sol a iluminar e aquecer o dia, trouxe a energia partilhada nas orações rezadas, cantadas e encantadas no acordar orante proposto para começar o dia. A leitura do martírio de Jesus Cristo trouxe a primeira memória das vidas entregues pelo reino de Deus. As rodas de conversa, embasadas na perspectiva dialogal, permitiram a escuta da memória do martírio dos atingidos pelas barragens de Mariana, Brumadinho. Tragédias anunciadas sem nenhum eco numa sociedade movida pelo lucro, ganancia e valor do capital, em detrimento da Vida dos filhos e filhas de Deus, ceifadas, destruídas pela lama.

A memória dos mártires das migrações e o drama da situação do preconceito, constituído a partir da desigualdade social, que assola o mundo foi mais um passo na caminhada do reconhecimento do martírio. Da história e memória dos povos indígenas, a mística e o martírio dos companheiros/as dessa irmandade que lutam em defesa dos povos das florestas. Luta e martírio que podem ser resumidos nas palavras de Zenilda “eles estão encantados e o sangue deles correm em nossas veias, por isso continuamos na luta”.

A voz de quem vive o martírio da terra e das águas, também ecoou nessa manhã, o testemunho da prisão, da tortura psicológica, mas sobretudo a tortura da exigência “de ficar distante dos companheiros/as do Movimento Sem Terra” silenciou a todos/as presentes. As lágrimas correram como lamento e também como indignação por constatar a riqueza dessa terra, a quantidade de trabalhadores produtores dessa riqueza e a não partilha da terra e dos seus frutos. Todas as reflexões nos apontam que todos nós somos testemunhas desse tempo que propaga a morte, que deve ser enfrentada no cotidiano de nossas lutas. Nas palavras de Tereza Cavalcante, a insistência de viver a mística do martírio sinaliza caminhos para a construção da emancipação das mulheres e homens desse universo. Cada um desses momentos e sua apropriação pelo grupo, deixava a marca do silêncio, do pensar e repensar na condição de cada um de nós chamados a viver a bem aventurança dos “perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.” (Mt, 5, 10).

Depois do almoço o convite para caminhada acompanhando os Varais dos Mártires, cada passo dado pelo Mosteiro, um encontro com a memória das Vidas pela Vida. Na trilha desse encontro, um encontro maior com as mulheres que com as mãos, a linha e os tecidos tecem o bordado, mas tecem também a vida, as palavras em forma de verso, prosa e arte e eternizam as vidas encantadas e aquelas, que seguem no testemunho da verdade e na defesa dos mais pobres e marginalizados dessa sociedade. O significado dos bordados, a composição das cores no entrelace com a memória, a profecia e a vida, foi o diálogo provocado pelas bordadeiras e os bordados vindos de alguns lugares do país.  

A tarde foi para continuar, em rodas de conversa, lembrando, contemplando e testemunhando a necessidade da construção do Reino de Deus na Terra. Vanildes trouxe “Vocês serão minhas testemunhas” (Jo 13, 15), assim abriu-se a escuta das memórias da tarde. Assim como cantou Gonzaguinha “Eu vou à luta com essa juventude que não corre da raia […] E constrói a manhã desejada”, ouvir a Neth e Janira falarem do martírio das populações negras, especialmente as juventudes negras e as mulheres, foi ouvir a dor dos inúmeros assassinatos, do tratamento diferenciado da abordagem da polícia aos negros, as parcas oportunidades e os cárceres cheios dos jovens negros, dos tristes dados do feminicídio das mulheres negras e das mães em luto e em luta pela memória dos seus filhos assassinados pelo estado. A dívida história de uma sociedade que cultivou a escravidão dos irmãos africanos, que desrespeitou sua cultura e minimizou seu povo. Porém a reflexão, também trouxe as tantas vozes da resistência desde os quilombos, Zumbi e ainda ecoam em nossos dias.

Em seguida a voz da diversidade e a memória do martírio das pessoas LGBTs, narrativa feita por Ester que nos lembrou que “existir é resistir” e, por isso, fazer o enfrentamento desse tempo é ocupar espaços e todo dia reafirmar a subjetividade para existir no mundo. Na memória do martírio da população em situação de rua, ouvimos as dificuldades em garantir vida digna a uma população que aumenta significativamente nas cidades brasileiras. Tantas reflexões que trouxeram o grito de tantas pessoas que foram assassinadas por serem mulheres, por serem moradores de rua e por seguirem uma religião, enfim a revelação de uma sociedade desigual nos recursos econômicos e políticos, que não aceita a diferença religiosa, a escolha sexual. As marcas de uma sociedade que tem mostrado sua face mais perversa, desumana. Entre lágrimas, reflexões, silêncios, a cantoria e o tambor que chamava para entoar um “canto novo ao raiar daquele dia de chegada em nosso chão.”

Para fechar o dia a noite de sábado o convite para refletir na Vigília martirial a ceia, a comunhão e a ressureição de Jesus sob o olhar das mulheres que ressuscitaram Jesus, por meio de Madalena. Para terminar esse momento foi reafirmado o compromisso, de cada um e cada uma, com a construção do Reino de Deus, lavando os pés uns dos outros, numa atitude de serviço ao outro. A ciranda marcou o inicio da festa em volta da fogueira e o encontro de irmãos e irmãs de todo o país, festa de partilha das músicas, dos cheiros, cores e sabores vindos de todos os lugares.

O raiar do dia, com a cantoria, trouxe o domingo com o momento orante e mais uma roda de testemunhas das famílias dos mártires que partilharem suas memórias, experiências de vidas nas comunidades, na busca da vida digna para todos. Entre a emoção de falar dos encantados, alegria da semente plantada na terra e no coração de cada um e cada uma que segue na luta, o encontro da Irmandade dos Mártires terminou com a leitura da Carta do encontro, que se compromete com a profecia  e a defesa da Vida, sobretudo dos/das mais pobres e marginalizados/as, o povo escolhido por Jesus. O envio proclamado por Zenilda nos deu a certeza de que ao voltar para as nossas terras estaríamos carregando as memórias, as Vidas pelas Vidas e o encontro com tanto companheiros/as de luta. Não estamos sozinhos! Construímos vínculos de Irmandade  para seguir na construção de outro tempo possível.

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Respostas de 2

  1. Claudia e Mirian, ler essa memória que fazem dos passos, danças, encontros, costuras, escutas, rezas, testemunhos, palavras, corpos, partilha, festa, ressurreição vividas e celebradas nesse encontro, deixa aquecido o coração e o desejo de seguir no caminho pela luta e libertação.

    Abraço queridas. Gratidão!

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"Chamados pela luz da Tua memória, marchamos para o Reino fazendo História, fraterna e subversiva Eucaristia."

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