É na tenda dos mártires da caminhada onde deve estar mesmo a juventude. Na tenda do deserto dos desafios. Na tenda da sede à procura do infinito. Na tenda da solidariedade com todos os largados à exclusão. Na tenda dos que cantam o Evangelho nas noites de luar ou de desolação. Na tenda dos mártires da caminhada, bebendo o cálice da Testemunha Fiel, Jesus, e com todas as testemunhas que o seguem.
Façamos desta Jornada Mundial da Juventude uma Páscoa, um Pentecostes. Reassumindo com paixão profética as causas do Reino, dando as nossas vidas, como deram e dão as suas tantas testemunhas, companheiras da caminhada. Juventude, quem falou em medo ou em cansaço havendo Páscoa, havendo mártires?
Pedro Casaldáliga
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A JMJ e o Bem Viver – Marcelo Barros
Hoje, em toda a América Latina, o “Bem Viver” é um critério social e político importante. Conforme a nova constituição nacional da Bolívia, um objetivo do Estado é garantir a realização do bem viver pessoal e coletivo. O “bem viver” é um conceito vindo das culturas indígenas e que corresponde ao que Jesus disse no evangelho: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Essa vida de qualidade e em abundância é o objetivo dos novos processos sociais e políticos emergentes em vários países do continente latino-americano e que em muitos lugares se chamam bolivarianos porque são inspirados na figura de Simon Bolívar, que no século XIX, consagrou sua vida à libertação e à integração de várias nações latino-americanas.
A Jornada Mundial da Juventude é um evento católico com objetivos bem restritos, mas pode ser sim como um fórum da juventude no qual os jovens não sejam apenas objeto da missão religiosa de uma Igreja, mas sejam protagonistas de sua missão mais ampla no mundo atual. A Tenda dos Mártires foi construída para ser o espaço onde essa articulação possa ocorrer e os jovens que nem sempre têm oportunidade possam conhecer e se sentir participantes desse processo de integração latino-americana e de inserção na vida de nossos povos.
Em grego, o termo mártir quer dizer testemunha. Não são mártires somente os irmãos e irmãs que morreram ao dar a vida pela causa da justiça. São mártires todos os homens e mulheres que por seu modo de viver testemunham que esse novo modo de ser do mundo é não somente necessário, mas possível e queremos construí-lo. Por isso, a Tenda dos Mártires é plenamente espaço da juventude que quer participar dessa construção do bem viver na sociedade atual. A certeza de nossa vitória vem da Páscoa de Jesus e páscoa do mundo que nessa tenda, crentes e não crentes são convidados a celebrar.
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JUVENTUDE E MARTÍRIO – Frei Betto*
Mártires são todos aqueles que morrem pela fé cristã, reza a Igreja Católica. Mártires são também aqueles que morrem pelos valores do Evangelho.
Assim, se Estêvão é o primeiro mártir (Atos 7, 54-60), apedrejado com a cumplicidade de Saulo, o futuro apóstolo Paulo, frei Tito de Alencar Lima, levado à morte em 1974, aos 28 anos, devido às torturas sofridas sob a ditadura militar, é um mártir atual, testemunha da fidelidade aos anseios libertários do povo brasileiro.
A Igreja Católica distingue mártires e confessores, dignos de serem reconhecidos como santos. São mártires os que derramaram o próprio sangue por serem discípulos de Jesus. São confessores aqueles que, embora tenham tido morte natural, deixaram um exemplo de vida condizente com os valores evangélicos.
A maioria dos mártires celebrados pelo calendário litúrgico da Igreja eram jovens. Foram assassinados pelo Império Romano, como Cecília (séc. II) e Sebastião (séc. III), e, mais recentemente, por regimes ditatoriais, como Edith Stein (1891-1942) e Maximiliano Kolbe (1894-1941), mortos pelo nazismo no campo de concentração de Auschwitz.
A Igreja não exige mártires. Não espera de nós, cristãos, heroísmo. Espera fidelidade ao caminho de Jesus, que implica a defesa intransigente dos direitos dos pobres, a luta por justiça, a tolerância frente a quem professa outra fé, a compaixão, o amor ao próximo, à natureza e a Deus.
Hoje, o martírio não consiste tanto em morrer pela fé cristã, e sim em viver por ela no seguimento de Jesus, assumindo o desafio de professar – não a fé em Jesus – e sim a fé de Jesus.
*Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
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Juventude que ousa lutar constrói o poder popular – Marcelo Barros
No mundo dos fóruns sociais e da comunicação virtual, a Jornada Mundial da Juventude pode ser um acontecimento marcante para muita gente jovem mobilizada para esse evento. Assim como Jesus se inseriu na realidade humana e se tornou um irmão de todo ser humano, a missão da Igreja não é apenas chamar a juventude para ser católica e sim inserir-se na realidade dos jovens, ouvir o que eles e elas têm a dizer à Igreja e o que gostariam de pedir ao papa e aos ministros da Igreja.
Nessa perspectiva, é importante que, por ocasião da JMJ, além de ver o papa e escutá-lo, os jovens pudessem também dizer ao papa o que esperam da Igreja e do ministério do bispo de Roma. E a JMJ ajudasse os jovens católicos e cristãos de outras Igrejas a verem mais claro sua vocação própria na sociedade atual e sua missão junto à maior parte da juventude que não se interessa por fé e é a principal vítima da publicidade e dos meios de comunicação do mundo atual. A Tenda dos Mártires, espaço da juventude comprometida com as pastorais sociais, pode ser o instrumento desse diálogo para contribuir com a JMJ e ajudar os/as jovens ali presentes a aprofundar sua missão no mundo.
De acordo com vários analistas da realidade, no mundo atual, o que está acontecendo de mais novo e profundo é o processo social e político emergente em vários países da América do Sul. Na Venezuela, Bolívia e Equador, assim como em alguns outros países, há um caminho social e político novo que tem sido fruto do protagonismo das classes mais pobres, parte das culturas indígenas e negras e tem conseguido reduzir a desigualdade social, estabelecer novas leis de justiça no campo e na cidade e dar prioridade à educação, saúde e moradia para todos. É importante que as Igrejas cristãs descubram a forma de participar desse processo. Jesus disse no Evangelho: “Pelos frutos, conhecereis a árvore”. Mesmo os adversários do bolivarianismo, reconhecem esses benefícios sociais. No Brasil, ainda não vivemos essa realidade, mas os movimentos sociais estão mobilizados para participar do processo nacional. No dia 07 de setembro como sempre o Grito dos Excluídos reúne milhares de pessoas em todo o país e a partir de um tema que cada ano é aprofundado em diálogo com a Campanha da Fraternidade da CNBB. Nesse ano de 2013, o tema do Grito será “Juventude que ousa lutar constrói o projeto popular”. O Grito convoca toda a juventude, cristã e não cristã, para participar das lutas pacíficas e da caminhada libertadora do povo e assim contribuir na construção de uma sociedade nova mais livre e mais integrada a esse processo bolivariano que está tomando toda a América Latina. De acordo com os evangelhos, Jesus diz aos jovens de hoje: “Não é quem reza: Senhor, Senhor que entra no reino de Deus, mas quem faz a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7, 21).
A Tenda dos Mártires é o lugar no qual a juventude pode redescobrir esses processos sociais novos, apaixonar-se por eles e engravidar novas formas de participar dessa aventura maravilhosa na qual Jesus ressuscitado estará conosco como companheiro bolivariano.
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Vicente Cañas (1939-1987)
Nascido espanhol, inculturado Enawene-Nawe, mártir brasileiro.
O Vaticano II (1962-1965) ajudou na reformulação profunda do trabalho missionário junto aos povos indígenas. Muitos jovens, leigos e religiosos, ajudaram em suas Congregações e na condução dos rumos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fundado, em 1972, como organismo anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Esses jovens eram capazes de conviver despojadamente com os povos indígenas. Lutaram para valorizar as culturas dos povos indígenas e demarcar suas terras como parte integrante de uma nova evangelização.
Um destes jovens indigenista era Vicente Cañas, Irmão jesuíta, nascido espanhol, naturalizado brasileiro, inculturado Enawene-Nawe. Vicente herdou de seu pai o sonho revolucionário, a capacidade de risco e a audácia de seu temperamento. Entrou na Companhia de Jesus em 1961 e carregou ao longo de sua vida religiosa a radicalidade de uma vocação que culminou no martírio. Viveu algum tempo no Ceará e logo foi enviado a Mato Grosso, á Missão Anchieta, em Diamantino.
Em 1969, aconteceu um fato sinistro que o introduziu definitivamente no mundo indígena do qual nunca mais iria se afastar. Seu batismo de fogo e sangue foi uma desastrada expedição da Funai aos chamados Beiço-de-Pau (Tapayuna) que habitavam entre os rios do Sangue e Arinos, no norte de Mato Grosso. O grupo indígena que contavam com mais de 600 índios, ficou reduzido a 41, por causa de uma gripe transmitida pela equipe da Funai. O Pe. Antonio Iasi, da Missão Anchieta, que cuidadosamente havia iniciado os primeiros contatos com os Tapayuna, foi chamado ás pressas para salvar os restos daquele povo. Iasi convidou Vicente para cuidar da saúde dos sobreviventes. De outubro de 1969 a abril do ano seguinte, Vicente viveu com os Tapayuna. Em maio, estes foram transferidos para o Parque do Xingu, reunindo-se a seus irmãos Suyá.
Depois Vicente Cañas conviveu por cinco anos com o povo Pareci, no noroeste de Mato Grosso. Em 1971, participou do primeiro contato com o povo Mynky, na época apenas 23 pessoas. Em 1974, participou dos primeiros contatos com os Enawene-Nawe, no rio Juruena, com uma população de 100 pessoas, aos quais dedicou os próximos anos de sua vida. Vicente era considerado pelos Enawene-Nawe como um deles. Participava dos seus trabalhos e rituais, era enfermeiro, mecânico, pescador e dentista. Os índios o adotaram como filho e parente segundo suas próprias regras de parentesco. Em seu diário descreve minuciosamente os costumes culturais dos Enawene-Nawe. Procurou viver a sua fé na prática da religião desse povo. No processo que levaria, em 1996, à demarcação de sua terra foi assassinado. Foi encontrado morto só um mês depois, em 16 de maio de 1987, ao lado do seu barraco na margem esquerda do rio Juruena, a cabeça inclinada para a esquerda como se quisesse beijar aquela terra de seu amor e de sua luta. Nu, (para nós) mas adornado com os colares, as braçadeiras, os brincos, as pulseiras, as vestes dos Enawene-Nawe.
Contrariando com sua presença a cobiço por terra e madeira, Vicente sabia que estava jurado de morte. A área estava sendo alvo de interesse de vários fazendeiros e madeireiros que viam no Vicente um empecilho ás suas pretensões. Ele mesmo chegou a comentar com os companheiros: “não estranhem se um dia vocês me encontrarem morto.” Os próprios índios o haviam alertado: “Se cuida. As picadas dos jagunços já estão perto do teu barraco”. Por causa do assassinato de Vicente Cañas foram indiciados os fazendeiros Pedro Chiquette e Carlos Camilo Obici, o ex-delegado da polícia civil na cidade de Juína (MT), Ronaldo Antônio Osmar, na ação penal apontado como um dos mandantes do crime, e o Martinez Abadio e José Vicente como executores do crime. Até hoje, nenhuma condenação.
Depois de ser periciado pelo Instituto Médico Legal (IML) do Estado de Mato Grosso, o crânio do missionário foi enviado para novas perícias ao IML do Estado de Minas Gerais. De lá, em 1989, o crânio do Ir. Vicente desapareceu misteriosamente. Depois foi encontrado por um engraxate de sapatos, numa caixinha que declarava seu conteúdo, perto da rodoviária de Belo Horizonte, fato até hoje não explicado.
O padre Bartomeu Meliá termina o seu relato sobre o companheiro Vicente com humildade: “Não é cômodo ter tido um mártir por companheiro da vida e de vocação, e um mártir como Vicente. É uma `Memória´ que queima por dentro, uma memória exigente e também uma garça de Deus”.
Paulo Suess
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